A cidade de Juiz de Fora, outrora conhecida por sua tranquilidade e apelidada de “Manchester Mineira”, viveu um dos períodos mais desafiadores de sua história recente entre os anos de 2010 e 2015. Uma escalada sem precedentes na violência de gangues transformou a rotina de dezenas de bairros, deixando um legado de medo, luto e cicatrizes sociais que persistem até hoje. Este período, marcado por intensos confrontos entre grupos rivais, ceifou inúmeras vidas, predominantemente jovens, e desestruturou a cultura em comunidades inteiras.
Minha Casa Minha Vida e a falta de Políticas Públicas
Historicamente, a percepção da violência em Juiz de Fora tendia a se concentrar em áreas comerciais ou de classes mais abastadas, conforme estudos de 2008. No entanto, a partir de 2010, essa dinâmica mudou drasticamente. A maior incidência de crimes violentos migrou para as periferias, especialmente para áreas próximas a condomínios do programa “Minha Casa, Minha Vida” (PMCMV), o que serviu para reforçar apelos por mais segurança pública. O que antes eram “rixas antigas” ou disputas por motivos “fúteis” entre jovens, rapidamente se transformou em uma “guerra entre gangues” que se alastrou por todas as regiões do município, levando a uma rotina de medo e preocupação entre os moradores.
A proximidade de Juiz de Fora com o Rio de Janeiro, a apenas duas horas de distância , e a crescente influência de grandes facções criminosas brasileiras, como Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos dos Amigos, evidenciada por pichações na cidade com as siglas desses grupos , sugerem que a violência local não era um fenômeno isolado. Ela estava intrinsecamente ligada a redes criminosas mais amplas e sofisticadas, que amplificavam a letalidade dos embates e moldavam as operações de gangues locais.
Jovens no Fogo Cruzado e a Proliferação de Armas
O período entre 2010 e 2015 foi marcado por um aumento dramático nos homicídios e tentativas de homicídio em Juiz de Fora, frequentemente caracterizados por extrema violência. De 2012 a 2016, o número de vítimas de homicídio no município mais que dobrou segundo dados da Polícia Militar à época. Um padrão particularmente alarmante é a alta proporção de vítimas jovens: entre 2012 e 2017, de um total de 801 vidas perdidas para o crime, impressionantes 403 eram indivíduos com 25 anos ou menos, de acordo com uma reportagem do Jornal Tribuna de Minas. Essa tendência local se alinha com descobertas acadêmicas mais amplas que apontam os homicídios como a principal causa de morte para jovens (15-24 anos) em áreas periféricas de cidades brasileiras desde a década de 1990.
Armas de fogo eram o meio predominante da violência, respondendo por 78% de todos os assassinatos entre 2012 e 2017, um número que aumentou ainda mais para 83% em 2017. Esse dado ressalta o crescente armamento das gangues e a natureza letal de seus confrontos. O aumento substancial no uso de armas de fogo e o crescimento nas apreensões , somados ao desvio documentado de 17 armas do Exército em Juiz de Fora em 2012, sugerem uma relação direta e causal entre a maior disponibilidade de armamento ilícito e a escalada da violência letal.
Rivalidades Territoriais bairros mais envolvidos
Os conflitos estavam profundamente enraizados em rivalidades territoriais entre bairros específicos, frequentemente iniciadas por razões aparentemente “fúteis” , embora cada vez mais impulsionadas pelo controle de rotas e pontos de tráfico de drogas. As principais rivalidades e áreas afetadas incluíam Granjas Betânia e Parque Guarani, Ipiranga e Jardim Gaúcho, Jóquei Clube I e Jóquei Clube II , e Jardim Esperança e Retiro.
Incidentes chocantes se tornaram parte do cotidiano: um confronto público na entrada de uma faculdade em 2012, envolvendo 15 pessoas e causando danos a um estabelecimento comercial ; um confronto dramático na portaria do Hospital Pronto Socorro (HPS) em 2012, entre gangues rivais do Ipiranga e Jardim Gaúcho ; e, de forma ainda mais dolorosa, brigas armadas nas portas de escolas, que se tornaram “insustentáveis” para a comunidade escolar. Professores eram agredidos e ameaçados, e pais, por vezes, foram forçados a retirar seus filhos da escola para protegê-los da violência que se desenrolava nos arredores.
A tragédia atingiu famílias como a de Joel Marques da Costa Cândido, um adolescente de 14 anos, baleado na cabeça por uma “rixa entre bairros” em Santa Efigênia. Sua mãe negou veementemente o envolvimento do filho com gangues, sublinhando a realidade de vítimas inocentes pegas no fogo cruzado. A família sofreu luto profundo, medo constante e intimidação, incluindo ataques à sua própria casa. Outro caso emblemático foi o de Luan Felipe, também de 14 anos, executado com quatro tiros em uma emboscada no Jóquei Clube I, supostamente atraído por duas garotas e morto por um adolescente de 17 anos de uma gangue rival. Esses casos ilustram a natureza calculada e muitas vezes traiçoeira dos ataques, bem como o envolvimento alarmante de indivíduos muito jovens na perpetração da violência fatal.
Mini-documentário da Comunitude
Diante desse cenário de devastação, a comunidade de Juiz de Fora se mobilizou para registrar e compartilhar suas experiências. O mini-documentário “Brigas de gangue em Juiz de Fora” , produzido pelo canal “Comunitude” , é um testemunho vital dessa época. Gravado anos após a intensificação dos conflitos, ele oferece um “panorama sobre a situação no município através do olhar de um dos jovens” , revelando como a violência “levou vidas e acabou com a cultura em dezenas de bairros” .
Essa iniciativa comunitária é crucial porque humaniza a tragédia, dando voz às realidades diárias, aos medos e ao custo emocional para aqueles diretamente afetados. O fato de a comunidade ter sentido a necessidade de documentar esses eventos retrospectivamente sublinha as marcas profundas e duradouras deixadas na cidade, indicando que o impacto foi tão severo que exigiu um registro histórico das cicatrizes persistentes e um ato de resiliência coletiva.
Curiosamente, plataformas digitais como o YouTube também foram usadas pelos próprios membros das gangues para confessar assassinatos, promover facções criminosas (como Comando Vermelho, Amigos dos Amigos e Terceiro Comando) e emitir ameaças a rivais, além de planejar invasões territoriais. Esses vídeos frequentemente mostravam jovens exibindo abertamente armas de fogo e fazendo “apologia às drogas e às facções criminosas” , demonstrando como as plataformas digitais se tornaram parte integrante de suas disputas territoriais, exibições de poder e esforços de recrutamento. Essa dualidade – a plataforma sendo usada tanto para a propagação da violência quanto para a sua documentação pela comunidade – ressalta a complexidade do cenário e a forma como a guerra de gangues se estendeu para o ambiente digital.
Impacto Social, Desafios e Desigualdades
O impacto da violência de gangues vai muito além das estatísticas de mortes. O medo e a insegurança generalizados transformaram fundamentalmente as rotinas diárias nos bairros afetados, forçando os moradores a viver sob apreensão constante. A violência foi tão profunda que “acabou com a cultura em dezenas de bairros”, indicando uma grave ruptura da coesão social, da identidade comunitária e da vida cultural local.
Essa situação contribuiu para uma desensibilização social mais ampla, onde a “impessoalidade das relações e a correria do dia a dia tapam os olhos de seus habitantes diante da tragédia alheia”, sugerindo um afastamento coletivo do sofrimento nas comunidades marginalizadas. A falta de debate público sobre os homicídios nas periferias, a menos que a vítima “fuja do perfil” da classe média, revela um viés perturbador na atenção dada à violência. Isso implica que o sofrimento nas periferias é sistematicamente desvalorizado ou ignorado no discurso dominante, o que, por sua vez, impede significativamente o desenvolvimento de respostas políticas eficazes e equitativas.
As atividades das gangues tornaram-se cada vez mais e inextricavelmente ligadas ao tráfico de drogas, particularmente o crack, que foi identificado em 80% dos processos de homicídio. Essa cooptação de gangues locais por redes de tráfico de drogas levou diretamente a confrontos mais frequentes e letais. A Polícia Militar aponta que cerca de 90% dos óbitos em 2017 estavam ligados ao tráfico.
A vulnerabilidade juvenil emergiu como um fator subjacente crítico. Adolescentes são desproporcionalmente representados como vítimas e agressores, frequentemente tendo acesso alarmante a armas de fogo. A “falta de perspectiva para a juventude” e a profunda “desigualdade social” são explicitamente identificadas como os principais impulsionadores de seu envolvimento em gangues e no tráfico de drogas. O trágico caso dos irmãos Lucas Ribeiro da Silva e Elias Alves Ribeiro, executados abraçados, ilustra vividamente as consequências fatais e a natureza coercitiva e mortal do controle do tráfico sobre jovens vulneráveis.
Desafios Enfrentados por Escolas e Famílias
As escolas, frequentemente localizadas no “limite entre os bairros”– muitas vezes as linhas de frente de disputas territoriais – tornaram-se pontos de conflito diretos. Alunos e funcionários enfrentavam regularmente ameaças e violência diretas, com a situação considerada “insustentável” pelas direções escolares. Professores relataram ser agredidos e ameaçados, e brigas de gangues frequentemente eclodiam nos portões das escolas durante a saída dos alunos.
As famílias suportaram imenso trauma, medo e até ataques diretos às suas casas. O profundo custo emocional e psicológico para os pais, alguns dos quais caíram em depressão, sublinha os efeitos de longo alcance da violência para além das vítimas imediatas. De forma alarmante, a observação de que alguns pais “incentivam a vingança” é um dado crítico e contraintuitivo. Isso sugere que o ciclo de violência não é apenas perpetuado por fatores externos, mas também, em alguns casos, pelas próprias unidades familiares que tradicionalmente servem como ambientes protetores.
Prevenção, Intervenção e Esperança para Juiz de Fora
O período entre 2010 e 2015 representou uma fase crítica e devastadora na violência urbana de Juiz de Fora, caracterizada por uma acentuada escalada dos conflitos de gangues, uma taxa de mortalidade juvenil desproporcionalmente alta e uma inegável ligação com o tráfico de drogas e a alarmante disponibilidade de armas de fogo. A violência concentrou-se geograficamente em bairros periféricos específicos, deixando cicatrizes socioculturais profundas e duradouras nessas comunidades.
Para enfrentar a complexidade da violência de gangues em Juiz de Fora, é imperativo adotar uma abordagem multidisciplinar e integrada, que combine políticas públicas robustas com o apoio a iniciativas sociais existentes. É crucial priorizar “investimentos na prevenção, usando todo tipo de iniciativa que vá direto ao encontro de trabalhos pedagógicos, educacionais”. Isso implica abordar as causas-raiz, como a “falta de perspectiva para a juventude” e a profunda “desigualdade social”.
O apoio a iniciativas de mediação de conflitos em escolas, como proposto pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) , também é crucial para desescalar tensões e fornecer mecanismos alternativos de resolução.
Além disso, é fundamental fortalecer os sistemas de segurança pública e justiça, abordando deficiências estruturais como a falta de investigadores e veículos funcionais nas delegacias de homicídios. Estratégias mais eficazes para combater o tráfico de drogas e controlar a proliferação de armas de fogo são igualmente necessárias, reconhecendo seu papel central na escalada dos homicídios.
Por fim, é essencial promover um debate público inclusivo e combater a desensibilização social, garantindo que todas as vítimas recebam a devida atenção e que seu sofrimento seja reconhecido, independentemente de sua origem socioeconômica ou localização.A história de Juiz de Fora entre 2010 e 2015 é um lembrete doloroso do custo da violência, mas também um testemunho da resiliência comunitária e da urgência de ações integradas para curar as feridas e construir um futuro de paz e oportunidades para todos os jovens da cidade.
* Pesquisa feita em portais de notícias da região e dados públicos, com apoio da Inteligência Artificial